A programação da Solar Galeria de Arte Cinemática parte, mais uma vez, à exploração de um certo território de fronteira entre as artes plásticas e o cinema. Contando já com um currículo considerável de exposições e atividades paralelas de artistas que experimentam dispositivos que situam ora num campo, ora no outro, ou então ambivalentes, selecionados entre os mais relevantes em Portugal ou no estrangeiro, por um lado, ou entre os mais interessantes dos considerados emergentes em território nacional, por outro, resulta de um conjunto de decisões, muitas vezes corajosas e difíceis. A essas decisões infere um esforço contínuo no apoio à criação de obras originais de artistas cuja relação se estabelece, numa primeira instância, com qualquer um dos sectores de atividade da Curta Metragens CRL. Por ser um artista cuja obra olha para o cinema, a Solar inscreve agora, mais uma vez, o nome de João Tabarra como um dos seus autores, numa estratégia propositadamente por várias vezes repetida. Uma relação que se estabeleceu já há muito, de proximidade, e em vários momentos: primeiro, o da participação na exposição intitulada 2012 Odisseia Kubrick, obviamente em 2012, com uma vídeo instalação, “The Moonwatchers Defeat”, de 2007; depois, com a participação no júri da competição experimental do 22º Curtas Vila do Conde, em 2015. Agora, João Tabarra, olha mais uma vez para o cinema, experimentando sobre a apropriação de um trailer nunca visto pelo público, de Jean-Luc Godard, para o filme Numéro deux.
Mas antes de se tecerem quaisquer considerações sobre o trabalho desenvolvido e do qual resulta esta exposição, antes dos textos analíticos de Nicole Brenez e Jonathan Rosenbaum, vejamos o que, na primeira pessoa, João Tabarra nos revela:
«Ainda em 2015, Nicole Brenez, com quem tenho trabalhado nos últimos tempos, propôs-me a aceitar um desafio enviando-me um trailer para o filme “Numéro deux" de Jean-Luc Godard, 1975. Com aprovação do próprio Godard, a ideia era aparentemente simples: podia usar para o meu trabalho os quatro minutos cinquenta e seis segundos e vinte frames de filme desde que lhe enviasse uma cópia digital de alta qualidade, realizada a partir do negativo original em 35mm.
Confesso que depois de uma fase eufórica, dada a excecionalidade da oportunidade, se seguiu um tempo de dolorosa obsessão e mesmo medo. Vivi durante estes quase dois anos como que dentro do que nós (eu e a Nicole) chamamos, em tom de brincadeira mas carinhoso, a “God Box”! Depois de inúmeras conversas com Nicole Brenez, que acreditava que eu teria a sensibilidade que se impunha para trabalhar este material, parti de sete questões de um texto da própria, intitulado por “Under Reconstruction “, utilizando-as como um guia para desenvolver uma instalação site-specific para a Solar. Neste texto encontrei sete afirmações que proponho, agora, que sejam entendidas como questões, cada uma delas colocada num dos sete filmes que integram a instalação. Trabalhando a partir da linguagem fragmentada do autor, insisto numa proposta de investigação sobre o cinema, sobre as imagens e sobre as respostas que podemos ainda dar às questões cruciais com as quais a contemporaneidade nos confronta, usando as narrativas visuais num mundo onde a imagem parece ser cada vez mais espetacularmente excessiva.
Assim, a partir de dia 8 de outubro, será apresentada na galeria Solar uma obra original dividida em sete filmes, com precisamente 4'56''20 de duração cada um, duração que origina também o título do projeto: 4.56.20.
Mais uma vez, a partir da insistência de Nicole Brenez e da sua confiança no meu trabalho, acabei por enviar os filmes a Jonathan Rosenbaum, segundo ela alguém muito especial e que compreenderia o que eu teria conseguido fazer com o material que me foi disponibilizado. Superando as minhas expectativas mais positivas, a resposta foi fantástica. Podemos, assim, contar com mais um texto para este pequeno catálogo, o que, sem dúvida, constituirá um elemento de análise bastante enriquecedor.»
Mário Micaelo e João Tabarra