Quando, em Agosto último, a vítima de rapto de 18 anos, Natascha K., de Viena, conseguiu fugir após 8 anos de isolamento da sua cave-prisão e se dirigiu numa carta aberta ao “público mundial” – como ela própria o chamou – e aos representantes dos media, estes mostraram-se surpreendidos pela sua abertura ao mundo e de como estava bem informada – uma vez que desde os seus 10 anos de idade não frequentou nenhuma escola. Quando se disponibilizou, três semanas após a sua fuga, para responder às perguntas de um jornalista numa entrevista televisiva, os media ficaram mais uma vez surpreendidos com a sua atitude confiante e independente e da forma tão natural como se apresentou aos meios de comunicação internacionais após todos estes anos de isolamento.
Para além do seu raptor, os meios de comunicação – uma rádio e um jornal – eram as suas únicas fontes de informação, os seus únicos “espelhos” do real, “reflexões” da realidade além da sua cela. Os media, eram escolhidos e censurados pelo seu malfeitor: a vítima podia ouvir apenas um programa de rádio a uma determinada hora do dia, tratava-se do canal mais conceituado da radiodifusão austríaca, e podia ler apenas certos artigos do jornal, também o mais prestigiado da imprensa austríaca, que ele tinha seleccionado.
Não se pode deixar de pensar, apesar de ou precisamente por causa do trágico deste crime terrível, num acontecimento de dimensões mitológicas. O que Natascha K. sentiu no próprio corpo assemelha-se à encenação da Alegoria da Caverna de Platão: os presos numa caverna, com os olhos fixos numa determinada direcção e acorrentados desde o nascimento, vêem apenas as sombras de objectos projectadas numa parede, provocadas pela luz de uma fogueira, enquanto estes são transportados pelos seus guardas, e consideram estas a realidade.
O psiquiatra que, a seu pedido, a acompanha contou que ela o cumprimentou como um velho conhecido, embora nunca antes se tenham visto: conhecia-o dos meios de comunicação. Com os lucros das vendas dos direitos da sua história, Natascha K. quer criar uma fundação que tenha como objectivo apoiar a prevenção para casos de rapto similares, por exemplo os raptos, maus tratos e a série de assassinatos de mulheres no México, que se têm registado nos últimos 13 anos: ela tomou conhecimento deste facto pelos media.
Para além de todas as questões de natureza psicológica, sociológica, socio-política e sexual que este caso criminal levanta, colocam-se ao mesmo tempo questões relativamente ao significado, função e poder dos media hoje em dia. Platão antecipa na sua famosa Alegoria da Caverna uma discussão sobre os media que continua até hoje. Imagem ou realidade, ser ou parecer – esta questão fundamental da percepção e interpretação do nosso mundo, e desta forma também da nossa existência, tornou-se o ponto fulcral para as investigações, invenções e criações de gerações de artistas e cientistas. Luz e sombra, reflexo e reflexão, miragens e fenómenos visuais eram os temas aos quais se dedicaram gerações de desenhadores, pintores, fotógrafos e cineastas, assim como médicos, físicos, psicólogos e filósofos de ambos os sexos.
Compreendo o meu trabalho de cineasta e artista audiovisual como uma continuação destas investigações, perguntas e aproximações sobre as questões fundamentais da percepção, do registo e da interpretação do nosso mundo.
REFLECTIONS – o título desta exposição remete em duas vertentes para o essencial do meu trabalho: o significado dos audiovisuais como espelho do mundo e o conflito com a fenomenologia dos próprios media. FILM IST., WELT SPIEGEL KINO, INTERNATIONALER SENDESCHLUSS, trabalhos apresentados nesta exposição, dão ênfase a esta orientação. Todos estes trabalhos são pensados como um work in progress, como uma série de ensaios para a aproximação pessoal às diferentes formas, tipos de funcionamento e de efectividade dos media audio-visuais – open end. Não se trata de formar uma teoria, de respostas, de definições, trata-se de demonstrar a variedade, tentativas de analisar os media audiovisuais com os seus próprios meios, e trata-se, sobretudo, como escreve Alexander Horwath, director do Museu de Cinema austríaco, na introdução para FILM IST.(1-6), „...de iluminar a ideia vaga de que nenhum outro procedimento que produz conhecimento é tão vivo e aberto e imaginativo como o cinema“. ODYSSEY TODAY e MARIAGE BLANC são dois trabalhos dedicados a um dos temas mais importantes do nosso tempo e do nosso mundo: a migração, a fuga, a movimentação contra a própria vontade, mas também o turismo em massa, o encontro com o estranho, o conflito com o desconhecido.
Em nenhuma altura da evolução do homem houve, num mundo fisico e virtual, um maior encontro de pessoas de diferentes origens, culturas e religiões – e é esta a nossa oportunidade. „O estranho existe quando se cria em mim a consciência da minha diferença, e deixa de existir quando nós todos nos reconhecemos como estranhos“, escreve Julia Kristeva no seu livro „Fremde sind wir uns selbst“ („Estranhos somos para nós próprios“). Enfrentamos, então, o espelho dos media para que nos tornemos estranhos para nos próprios.
Gustav Deutsch, Outubro de 2006